Como o mundo sofisticado nos transforma e o desafio da escrita
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Speaker
Três divãs. A psicanálise, o mundo e o rock'n'roll.
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Speaker
O admirável mundo novo, não o do Huxley, mas o nosso, que cada vez que o sofisticado nos enrompe pela porta. O que nos muda para sempre? Acontecerá todos os dias? Creio que sim, se estivermos atentos. Caso contrário, o lugar é sempre o mesmo. Quando há lugares.
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Speaker
Estou a tentar escrever a introdução para o episódio de hoje e as palavras escasseiam. É-me raro, mas às vezes acontece. Por exemplo, quando fico arrebatada. Não consigo olhar para o maior amor de todos sem ficar espantada. Fico sem palavras.
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Speaker
Creio que é o que acontece quando as coisas nos tocam em lugares à quem da linguagem. Aliás, foi assim que aprendi a gostar de poesia, quando percebi a complexidade de colocar uma palavra num lugar à quem da linguagem.
Influência duradoura dos Beatles na vida do narrador
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Speaker
Tudo aconteceu no dia em que a minha mãe vestia uma saia de fazenda com padrão achedrezado, com o corte do kilt, um pouco mais comprida, em tons de verde. Usava como as botas de pele castanhas de cano alto. A saia cobria um pouco as botas. Estávamos junto à sapateira lá de casa. Eles tocavam na rádio e a minha mãe começou a bater o pé e a cantar o lar.
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Speaker
Eu devia ser muito pequenina, porque é esta a memória. Umas botas e uma saia rodada, do primeiro momento em que os ouvi. Sou os Beatles, disse a minha mãe. E a seguir ensinou-me a dançar o twist.
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Speaker
E foi assim. Depois destes quatro tipos teram mudado o mundo, voltaram a mudá-lo, o meu, e nunca mais soube viver sem eles. O mesmo me aconteceu com o Elvis, mas isso são outras cantorias. Eu consigo viver perfeitamente sem o
Três Divãs: Escolhas de carreira em música e jornalismo
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Speaker
O convidado de hoje, Três Divãs, podia ter-se dedicado à indústria de construção de coberturas. Mas não. Não foi isso que fez. Resolveu ler muito, escrever muito, ouvir muita música e escolheu dar-nos um tiro do qual o mundo, ainda hoje, colhe os estelhazos.
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Speaker
O disco de hoje tem tudo lá dentro. Tudo. Tem castração e liberdade. É tão grande, mas tão grande, que não cabe dentro do coração. Não cabe dentro de nós. E só damos conta dele, porque entramos em o esmoço de cada vez que toca. Existe um lugar onde o conseguimos colocar tudo. A memória. O que é uma chatice para aqueles que a têm em curta, pois nunca saberão o que isto é.
Introdução a Nuno Miguel Guedes e o ambiente da conversa
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Speaker
Nada mais foi igual desde o Revolver, o sétimo disco dos Beatles, escolhido pelo Nuno Miguel Guedes, com quem terei o prazer de conversar com a Patrícia Câmara. Hoje, na Livraria do Bernardo Trindade, no Largo da Academia Nacional de Belas Artes. Olá, Nuno, sejas bem-vindo.
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Speaker
Olá, Patrícia. Um gosto de estar aqui. Muito obrigado pelo convite.
Carreira e identidade diversificada de Nuno Guedes
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Speaker
Obrigada, Lócio, e obrigada por teres aceitado o nosso convite. Nuno, apresenta-te. Tens que ser tu. Ah, eu adoro quando fazem-se aqui. O que é que queres que eu diga? Como é que nós nos apresentamos? O meu nome já o disseeste.
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Speaker
E eu não gosto muito desta ontologia de sermos o que fazemos. É uma tal coisa de conversa de festa, não é? O que é que tu fazes? Para mim não me interessa muito, mas ajuda. Eu faço o que gosto, em primeiro lugar. E tenho essa sorte, e é uma sorte que foi conquistada e que às vezes dói, confesso.
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Speaker
Mas escrevo no sentido de ser jornalista, é a minha formação básica. Fiz outras coisas, como trabalhei em televisão, fiz rádio, faço programação cultural, e ontem tive a moderar uma sessão de poesia e conversa sobre um poeta, que no caso era o Nuno Júdis,
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Speaker
E pertence a uma espécie de banda de uma idade chamada Lisbon Folk Tree Orchestra, em que nós juntamos aquilo, a música e uma música pop, para tirar um bocadinho a solomidade da poesia com poemas verdadeiramente esfuziantes e que eu tento não estragar o máximo que posso.
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Speaker
E, portanto, eu acho que o que é que eu posso ser mais, não é? Sou muitas coisas, mas uma coisa que eu sou é um pouco, reflete-se, e já estou a entrar nas próximas perguntas, reflete-se um bocado também neste disco, que eu tenho muitos interesses e sou muito disperso e sou muito eclético e não tenho assim grandes...
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Speaker
grandes barreiras, nem em relação ao conhecimento, à literatura ou à música. Tento... É uma esponja. Evidentemente que os meus gostos vão se formando, mas este disco dos Beatles reflete também um bocadinho aquilo que eu acho que sou livre, desde que à medida do possível, que é isso que eu quero sempre lutar,
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Speaker
E também com o olhar e com a curiosidade muito desperta e espero estar assim até me ir embora. E diz-me uma coisa, é essa curiosidade que te leva para o jornalismo? O que é que te leva a escolher o jornalismo? O que me levou para o jornalismo...
Visão romantizada do jornalismo versus realidade
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Speaker
Os jornalistas não vão gostar de ouvir isto.
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Speaker
Eu tinha uma noção muito romântica do jornalismo, quando era adolescente. Aliás, tinha uma noção romântica de tudo, como acho que qualquer adolescente, se tudo correr mal ou bem, nessa doença benigna. E tinha uma ideia de que o jornalista era uma espécie de investigador da verdade, o porta-voz de alguma coisa que não estava...
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Speaker
O jornalista, como romântico, fazia grandes noitadas a escrever e a escrever textos extraordinários que iriam mudar o mundo. Dessa ideia ficou umas noitadas, porque o resto não... rapidamente vi que não era muito interessante. E rapidamente eu venho de uma família
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Speaker
que tem publicitários, a minha mãe era publicitária, foi a primeira mulher de diretora criativa, aqui fica o seu homenagem, numa altura em que era complicado ser uma mulher, ter numa posição como ela tinha, e sempre a publicidade cresceu comigo e, então, se não for para o junho, então vou para o lado contrário, que era uma heresia na altura, vou fazer publicidade, fui cópia durante algum tempo, mas depois lá está a curiosidade, isto também já não me interessa.
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Speaker
e tive uma oportunidade e fui para Itália estudar, etc. E quando voltei de Itália, fui estudar argumento, televisão, rádio, jornalismo também, e quando voltei de Itália, voltei no dia 20 de maio de 1988,
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Speaker
dia em que saiu o primeiro número de um semanário chamado O Independente. E eu disse, filhos da mãe, isto é o que eu quero fazer, isto era o que eu queria fazer. Uma coisa livre, completamente contemporânea, a tirar para todos os lados, que falava a minha linguagem, eu tinha 23, 24 anos,
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Speaker
E, portanto, isso voltou a ter aquele jornalismo. Tinha alguns ídolos, a Joan Didion, o Gates Elise, o Tom Wolfe, New Journalism, que o jornalismo e a literatura andavam ali lado a lado. E isso queria também, quando fosse grande, queria ser como eles. E o independente fazia isso, quer dizer, rompia com algumas barreiras e então voltou ao jornalismo nesse sentido.
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Speaker
E aí fiquei, depois do independente, saímos para fazer uma revista completamente iconoclasta chamada Revista Kappa, uma revista que seria incapaz de existir neste momento. E depois, ainda hoje escrevo. Fui escrevendo para vários sítios sobre freelance. Se estes incapazes de sair neste momento? Incapazes. Incapazes, porquê?
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Speaker
Olha, porque era justamente, porque era uma revista feita por pessoas livres e que às vezes isso era bastante incómoda e num clima como eu acho que fizemos agora em que há uma ortodoxia moral e ética que francamente não me agradem muitas coisas,
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Speaker
Essa liberdade era cortada, com certeza, e pronto. Nesse aspeto as coisas aconteceram porque tinham que acontecer e ainda bem que teve a época certa e eu não tenho saudades de nada, não tenho nostalgia, isso sou eu, e raramente olho para o retrovisor de facto.
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Speaker
E depois da capa fui mantendo como, quando a capa acabou, eu fui fundador e é fundador da revista, e quando a capa terminou tinha já um pequeno nome que me permitiu trabalhar onde eu quisesse, com quem eu quisesse e começar a fazer televisão também.
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Speaker
e poder sobreviver de forma simpática nessa altura, depois as coisas mudaram, etc. e estão como estão agora, mas continuam a escrever, continuam a escrever sim e fazer outras coisas.
Desafios do jornalismo moderno
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Speaker
Tu agora disseste as coisas estão como estão agora, mas continuam a escrever. Estás um bocadinho desabudido com o jornalismo que se está a fazer.
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Speaker
Já estou na fase da aceitação. Como é óbvio, há muitas razões para que o jornalismo que se está a fazer não seja o melhor.
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Speaker
Em primeiro lugar, porque o jornalismo, e quando eu falo jornalismo, é do modo, sobretudo, a imprensa, e não vou dizer imprensa escrita, porque é uma tautologia, atenção, a imprensa é escrita, mas sobretudo a imprensa reagiu mal ou não soube reagir, como tantas outras áreas da comunicação,
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Speaker
ao aparecimento da internet e à velocidade com que a notícia, com a informação e até em conseguir filtrar essa informação. Portanto, houve aqui uma democratização da informação que tem o seu lado bom e feliz e que tem o seu lado também perigoso, como nós sabemos, com as fake news, etc. e que até nos invade politicamente e nas nossas decisões do dia a dia.
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Speaker
o jornalismo não está capaz de sustentar essa coisa, porque ainda não só não encontrou lugar, como também paga mal. Começou a haver muita gente que foi trabalhar sem remuneração,
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Speaker
o que significa que há aqui uma lei de mercado também, o que significa que, porque eu sou dono de um jornal e tenho pessoas que estão a estagiar sem remuneração, por aqui é que eu vou pagar a fulano que, se calhar, escreve melhor, mas que não preciso, ele faz, ele faz, não é o estagiário que o faz. E o estagiário não sabe tudo.
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Speaker
E há aqui toda uma espécie de bola de neve que fez com que o jornalismo fosse apanhado numa armadilha de que, a meu ver,
Esperança no jornalismo com verificação de fatos
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Speaker
ainda não soube sair, mas, felizmente, eu vejo algumas melhorias. Vejo algumas melhorias com o fact checking, com uma clareza maior dos termos editoriais de cada publicação, etc. E até pelos jornais online, porque tiveram que fazer isso.
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Speaker
Mas o jornalismo, mais uma vez, eu não tenho qualquer nostalgia, eu acho que as coisas mudam inusoravelmente. Eu sou molecólico, mas não sou nostálgico e como conservador as coisas... Sei que a mudança é irreversível e que tem que acontecer, mas gostaria que fosse acompanhada de um compromisso, e esse compromisso no jornalismo é a qualidade.
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Speaker
E pronto, se me perguntas se eu estou desiludido, estou, mas não ao ponto de não querer fazer mais. Eu gosto muito do que faço, eu gosto muito de escrever e há loucos que dizem que eu até escrevo bem. Portanto, não vejo razão de não, de desinvestir esse meu amor, essa minha paixão, já que faço o que gosto, isto também faz parte do que gosto. Sim, mas estávas há pouco a dizer este...
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Speaker
que agora a revista não poderia ser publicada ou não seria publicada, ou até seria, mas sofreria algum tipo de ataque, com certeza. A minha questão aqui também tem a ver com isto, que não há uma frustração enorme quando se escreve, se sabemos no mundo do politicamente correto que vivemos agora.
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Speaker
Claro que é uma frustração enorme. Eu diria mesmo revolta. É a única coisa que me leva para as barricadas neste momento, de facto. É este tipo de falta de liberdade. Ou seja, eu acho que toda a gente tem direito a idiotice e há coisas que têm de facto de limites, de qualquer forma. Mas isto está a ser demasiado. Eu também escrevi muito idiotice quando estava na capa.
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Speaker
Eu e outros. A capa foi fundada e o diretor era o Miguel Esteves Cardoso. Tinha excelentes articulistas, um vasco muito valente. A Agustina Betteca Luiz era uma coisa de luxo.
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Speaker
impensável nos dias de hoje, porque era muito dinheiro e as pessoas eram bem pagas. Mas há aqui um clima de facto... E lidas. E lidas com alguma fidelidade.
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Speaker
E se publicássemos coisas, imagina que o Miguel deu-lhe uma travadinha a certa altura e mudou a revista só para homens, que é um artifício, uma coisa completamente palerma, não era nada só para homens. A maior parte nós íamos às sondagens dos leitores e a maior parte dos nossos leitores eram mulheres.
00:15:30
Speaker
e nossas coisas, só para homens, cocktails, não sei quê, não sei o que mais, e as nossas disparatos, os nossos delírios, alguns desses delírios, seriam um julgado sobre uma perspetiva, não sei, de tudo o que tu possas usar de palavras feias, e não o eram, de facto, porque aquilo tinha um tom satírico muito claro, não pretendíamos insultar ninguém, pelo contrário, éramos todos
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Speaker
vivíamos bem, nem minorias, nem grupos, nem seja o que for. Mas eu receio, como, aliás, quando nós fomos a Tribunal, por abuso de liberdade de expressão, e fomos logo retulados pela juíza, como pertencento a um determinado grupo social, privilegiado, e a uma determinada ideologia, que para mim é horripilante e perfeito, profundamente é de onda. E eu fiquei estupefacto.
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Speaker
Como é que uma juíza me pode estar a dizer que eu sou, pode dizer as palavras dela, um Keknasi? E isto ainda... Estávamos em 1990. Eu acho que aquela juíza, de certa forma, foi uma espécie de pronúncio do tipo de rótulos ou de gavetas de que eu não me enquadro e que me aflige muito.
00:16:55
Speaker
nesta sociedade, em todos os níveis de vida, de ser humano, desde a sexualidade até o que quiseres, e que, para mim, é o quarto da liberdade, percebes, da minha liberdade como ser humano e a minha indiferença perante assuntos que eu tenho que estar indiferente, de facto, não tenho que ser ativista em todos os assuntos. Há assuntos que eu não quero saber, é viver e deixa viver, e dá-lhe direitos iguais a toda a gente.
00:17:25
Speaker
Ponto final. E isso, agora, receio que esse nosso ponto de vista, e ainda mais quando há uma radicalização, há uma extremação desta sociedade,
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Speaker
Vocês veem isso, que as redes sociais, etc, isto é um discurso antigo, mas que eu não me reconheço nela. O mundo tornou-se uma gigantesca caixa de documentários e, de repente, eu e outro, que somos moderados.
00:17:58
Speaker
É que não são comentários, são atacários. Tudo fulanoizado, não é?
Moderados como nova voz subversiva
00:18:04
Speaker
É adominem, não discutes ideias, discutes as pessoas e insultas as pessoas. Eu não estou habituado a isso, ou não estava habituado a isso. Estava habituado a discutir ideias e sempre discutirei ideias.
00:18:16
Speaker
Pessoas não. E fico constrangido e fico triste, de facto, porque eu costumo ainda ontem estar a falar com um amigo meu e dizer que nós os moderados somos o novo rock'n'roll. Porque não temos lugar, é que é uma novidade, somos subversivos. Querer ouvir o outro neste momento é um ato de subversão.
00:18:40
Speaker
Eu não compreendo isso, mas olha o que eu faço e quero continuar a fazer. Nós sentimos até do ponto de vista do pensamento psicanalítico, mantê-lo. É mesmo esse lugar, é a tentativa de qualquer coisa que fica no meio das coisas. Como é que se consegue permanecer neste lugar de troca de pensamentos.
00:18:59
Speaker
Exatamente. Essa tem sido a nossa luta mesmo. Para a própria psicanálise continuar a vingar. Claro, claro. Na sua própria existência e na sua identidade. Claro, claro, Patrícia. Muito bem, agora vamos entrar mesmo. Posso vir embora? Não, vamos falar um bocadinho com o Banio do Senor. Isto anda tudo ligado. Então, exatamente.
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Speaker
Porquê o Revolver dos Beatles, sinto que tenho que te dizer já, que se me perguntassem a mim qual é que era o disco da vida, eu dizia que era o Revolver dos Beatles, fiquei tão contente quando tu me disseste que é este que querias.
Por que Revolver dos Beatles é significativo para Nuno
00:19:36
Speaker
Porquê o Revolver? Olha, porque vocês fizeram uma grande maldade, basicamente. Quer escolher um disco, uma pessoa que gosta.
00:19:46
Speaker
e confundir para mais esses dias com a vida. Eu tive aqui que fazer um exercício que demorou quase uma semana de critério de ir tirando, diante desses critérios. Ou seja, há discos da minha vida, há discos que eu ouvi e que provavelmente tiveram em fases importantes da minha vida e se eu disser isto. Sinatra, por exemplo. Já não sou sinatrófilo, sou sinatrólogo. Sinatra.
00:20:15
Speaker
Sinatra, por exemplo, é alguém que desde a adolescência, em contraciclo, tive a sorte de ter uma discoteca, lá está, muito eclética, os meus pais gostavam de chão, são franceses, boleros, pop italiano, Sinatra, Zé Mário Branco, portanto, uma coisa muito... música brasileira, Beatles. E portanto, eu tinha sempre ali, quando eu era miúdo, tinha sempre ali uma mina para explorar.
00:20:45
Speaker
E quando vocês me pediram isto, eu tinha que pensar, bom, o Sinatra está sempre na minha presença, é o meu maior confidente, eu já escrevi 300 mil coisas sobre o Sinatra e espero escrever muito mais e surpreende-me sempre.
00:20:58
Speaker
pelo que me deu, pelo que fez, etc. Por eu é ponto, mas isso é demasiado óbvio, depois ia escolher uma coisa muito triste e acabava toda a gente a chorar, eu não estou para isso. Depois pensei, sei lá, o outro disco que não mudou a minha vida, porque acho que a arte não nos salva, nem nos faz melhores pessoas, acrescenta-nos, mas não nos redimida nada, ajuda muito.
00:21:23
Speaker
E outro disco, por exemplo, Closer do Joy Division, quando ouvi aquilo, que foi uma epifania para mim, 15 anos, que é isto, a tristeza, e já dá para perceber que eu não sou uma pessoa muito otimista, antes, por contrário, melancolia. E pronto, podia ser isso, esteve na calha.
00:21:43
Speaker
E depois peguei nos Beatles, porque já musicalmente é uma banda que para mim é absolutamente extraordinária e que em sete anos faço uma evolução absolutamente extraordinária.
00:22:01
Speaker
e que não só eles mudam, como dão a mudar, ou seja, eles oferecem. E isso mudou um bocadinho também a minha vida e a primeira canção que eu aprendi a cantar e amassar toda a gente.
00:22:17
Speaker
Fui o Michel Mabel com três anos. Na minha maior dia ficava furiosa. Não sei o que é isto. Era uma caquinha mestrada. Na família eu queria cantar o Michel Mabel. Mas os Beatles sempre estiveram em todas as fases e acompanham. A primeira fase, quando era miúdo, são os ritmos mais fáceis, os acordes mais fáceis, canções em acordes maiores.
00:22:46
Speaker
Bom, pode-me falar, é tardio o repareto. Não, é depois disto. É depois disto. Sim, mas é uma coisa que fica... Mas por exemplo, I wanna hold your hand, or help, ou não sei quê. Aqui o pomiu não é ótimo, porque aqui a gente está só... É, para isto é muito agido. Mas agora este disco, curiosamente este ano, 66, este disco escolhi-o porque, se calhar, é catedral de tudo o que eu gostava. E como eu te disse, tem todo aquele ecotismo.
00:23:16
Speaker
é feito numa altura em que os Beatles, no auge da sua popularidade, com aquelas loucuras todas que havia sido, e nós não vamos mais para palcos, que estamos fartos disto, não é? Nós vamos para estúdio, enfiamos em estúdio e nunca mais vamos para palco, só aconteceu até 70 no famoso concerto lá do terraço da Apple. E isto é uma coisa...
00:23:42
Speaker
inusitada, ou seja, acabou-se a fama, acabou-se essa história toda, nós queremos estar sugados e fazer aquilo que gostamos e fazer com as ferramentas que temos. E ao fazerem o Revolver, além da qualidade extraordinária das canções,
00:23:59
Speaker
O que me deram a mim, pessoalmente, que gosto de canções, eu sou apaixonado por canções, o songbook americano, com Porter, essas coisas, mas o que me deram a mim foi também a possibilidade de ver o making of das canções.
00:24:16
Speaker
Como é que é em estúdio? O que é que eles estão a fazer? E tem esta faixa em que a música é passada ao contrário, percebes? E isto foi deslumbrante e continua a ser deslumbrante. Sendo que em 1966 há três discos da música popular anglo-saxónica e este.
00:24:33
Speaker
é o Blonde on Blonde do Dylan e é o Pet Sounds, portanto é um anúncio mirabilis. Às vezes estás a ouvir o Revolver e há coisas que cheiram mesmo a Brian Wilson, sem ser. E vice-versa, porque eles estavam sempre em contacto. Sim, sim, sim, é incrível.
00:24:51
Speaker
Incrível. E uma competição saudável. De facto, o do Dylan também, mas eu digo-te uma coisa, eu acho que estes, tanto os Beach Boys, o Brian Milford... Estão acima, estão acima. O Dylan é mais uma evolução pessoal. Sim, sim. Estes tipos foram experimentar tudo o que lhes apetecia para dentro de um estúdio. Tudo e bem, e com um produtor que seria um produtor que não... Que é o George Madsen, se é George Madsen, porque é um tipo que vinha de outra geração.
00:25:20
Speaker
E que os acompanhou até ao fim. Muito stiff, muito engravatado. E que os compreendeu. E isto é muito... Eu não sabia que isto era possível. E que esta figura do produtor era tão importante. Sabe, que os músicos chegavam ali e diziam, nós somos gênios e está feito.
00:25:38
Speaker
É preciso alguém que os compreenda e que lhes dê a possibilidade de sugerir até maneira de se acrescentarem. Mas repare a diferença, não é? Em 66, esse tipo de gravata e blazer percebeu esta gente toda. Em 90, a juíza chamou-te Keknazi e hoje temos uma casa de banho mista em casa. Ainda ontem foi uma casa de banho mista, mas estamos a ter complicações quando se colocou um símbolo em cima de uma porta.
00:26:06
Speaker
Vamos ver onde é que vamos para. Estás a ver. Olha, diz-me uma coisa, tu escolheste, eu pedi-te para escolher a tua canção favorita deste álbum, e tu escolheste Eleanor Rigby. Vamos ouvi-la? Depois conversamos um bocadinho sobre ela, pode ser num... Sim, como é ao gosto. Então vamos lá.
00:26:40
Speaker
Helena Rigby Pega o arroz em uma igreja Onde o casamento foi Existe em um sonho Espera na janela Usando o rosto que ela põe Em uma garganta pela porta
00:26:55
Speaker
Quem é para todos os povos? De onde eles vêm? Todos os povos? De onde eles vêm? Fr. Mackenzie, escrevendo as palavras de um sermão que ninguém vai saber.
00:27:18
Speaker
No one comes near Look at him working Dying his socks in the night When there's nobody there What does he care? All the lonely people Where do they all come from? All the lonely people Where do they all belong? Ah, look at all the lonely people
00:27:49
Speaker
Ah, olhe para todas as pessoas lindas Helena Rigby morreu na igreja e foi presa junto com o nome dela Ninguém veio, Fr. Mackenzie, escapando a terra de suas mãos enquanto ele caminha da igreja Ninguém foi salvado, só ela
00:28:29
Speaker
Não, não. Ele não é o Rigby. Conta-nos lá.
00:28:33
Speaker
Olha, isto de ser... Eu menti, então, quando acho que é a melhor canção. Não acho que é a melhor canção, foi mais uma vez uma inserida. Porque as canções são todas boas, por Deus!
00:28:49
Speaker
e tive alguma dificuldade em fazer esse exercício. De qualquer forma, tive índices entre os... Pronto, aquelas coisas, quem gosta dos Beatles, depois às vezes divide-se entre o John Lennon e o Paul McCartney.
00:29:04
Speaker
Eles complementavam-se muito, não é? O Lennon mais com arestas e com mais rock'n'roll attitudes, e o McCartney que vinha buscar coisas mais melódicas, até mais antigas, que vinha das coisas que eu via antigamente com os pais, mais de voo de viol,
Eleanor Rigby: Temas de solidão e influência clássica
00:29:21
Speaker
etc. Pronto, mas enfim...
00:29:22
Speaker
O Eleanor Rigby, porquê? Tive a Interest e o For No One. O For No One é assim, para quem gosta de Joy Division e conhece o Love Will Tear Us Apart, o For No One antecipa o For Love Will Tear Us Apart durante umas belas décadas.
00:29:41
Speaker
Porquê? Porque fala justamente da solidão a dois, da rotina. She wakes up. É uma rotina, uma solidão que é um casal cuja relação já não funciona e que o cotidiano atropela. Já destruiu aquilo e é um pouco igual a Love or Terror, essa parte, em termos temáticos.
00:30:05
Speaker
O Eleanor Rigby é uma canção que também fala de solidão, mas uma solidão individual, uma solidão daquilo que não tem lugar. As vinhetas, os retratos que estão nesta lírica, e eu gosto muito de letras, e sou letrista também, esqueci-me de ver esta, esta lírica tem...
00:30:24
Speaker
São vários retratos, o padre que está sozinho, a Elena Rigby que apanha o arroz de um casamento que tinha acontecido. São retratos muito tristes e muito sós, e depois o narrador pergunta de onde é que vêm estas pessoas, onde é que elas pertencem.
00:30:46
Speaker
E isto é extraordinário, escrever sobre um assunto deste, desta maneira, e depois escolher, para embrulhar esta lírica, isto é a mão do George Martin, foi da música clássica, um acompanhamento de cordas. E estamos a falar da banda mais uma vez.
00:31:06
Speaker
A maior banda do mundo, a mais conhecida, a mais não sei o quê. Não tens nem cordas e não tens bateria, nada. É só cordas, violoncelos e violino. E pronto, eu acho que não posso dizer.
00:31:22
Speaker
que será a melhor, porque é muito difícil de me deitar fora o I'm Only Sleeping ou outras, até o Yellow Submarine, que é deste disco, que não é tão mau como isso, mas pronto, foi basicamente essa a razão que me levou, foi a temática, o tema da lírica e também a experiência, a espécie de surpresa que é a forma como esta canção se apresentava.
00:31:52
Speaker
Patrícia, Eleanor Rigby, o que é que tu tens a dizer sobre Eleanor Rigby? Ela se quer causar problemas, Patrícia. A Patrícia foi apanhada na curva porque estava aqui... Então? Estava em profundidade. Eu percebi que estabas, mas não estava zero à espera que eu te perguntasse. Mas é que eu também quero saber porque é que tu gostas de Eleanor Rigby, porque sei que gostas. Pois, porque é impossível não gostar.
00:32:17
Speaker
Estava a pensar, eu por acaso sinto-me mesmo muito melancólica no sentido da existencialista, não é? Acho que toca, e realmente tu disseste uma coisa que me parece incrível, que é a pergunta de onde é que isto surge, o que me fez sentir de onde é que isto surge dentro de nós, não é? Onde é que pertence, onde é que pertence esta gente? Onde é que vem, para onde pertence, exatamente. Mas há ao mesmo tempo uma espécie de um despertar para este lugar interno, não é? E isso é como um eco-automático, estava a pensar no que vocês estavam a dizer na forma como a própria música
00:32:43
Speaker
Sai, não é? E faz, faz uma coisa quase... E tu usaste a palavra osmose, não foi? Porque há uma sintonia visceral nas coisas, não é? Que de repente te remetem para estes lugares. Ao longo de toda a música é isto. Esta sensação de repente, não é? Que te assombra esta ideia destes lugares melancólicos internos. Sim, sim.
00:33:04
Speaker
Acabaste de me resumir também e de dar os melhores argumentos que eu dei. Complementares, complementares. Eu gosto muito... Tu iniciaste aqui este pedacinho de conversa com uma melhor...
00:33:20
Speaker
Não é preciso ser a melhor, é a tua favorita, que também não é a favorita, porque deves gostar de muitas outras, mas esta, se calhar, todas, não é? É difícil escolher, mas revejo-me. Revejo-me por várias razões, revejo-me pela minha vida, revejo-me por aquilo que eu acho que sou e aquilo que eu acho que sinto, e depois tenho uma data de critérios objetivos, melómanos, se tu quiseres, para perceber a extraordinária canção que é esta que estou aqui.
00:33:51
Speaker
E quando fazemos este podcast, a partir de aí gostamos de passar três canções e cada um escolhe a sua favorita. Às vezes coincidem, olha, logo no primeiro a Patrícia, a canção dela coincidiu logo com a Simone da Libeira. E foi tão engraçado porque tu disseste o nome do disco e depois disseste o nome da canção favorita e eu pensei, mas este tipo vai me tirar tudo.
00:34:16
Speaker
Diz-me o nome do meu disco favorito, diz-me o nome da minha canção favorita. Mas eu gosto de todas. E eu pensei que é mesmo uma das que eu gosto mais. Pelos mesmos motivos que tu disseste, porque é toda a cadência e todas as cordas, tudo é espetacular.
00:34:34
Speaker
E porque toca naquilo que é uma coisa que eu acho que toca no lugar da solidão, que eu acho que é uma coisa, que a solidão é uma condição humana. E depois, já noutros podcasts, falámos sobre isso, nomeadamente com o Mário Cordeiro, que falámos muito sobre a diferença entre solidão e solitude. E eu acho que aos que tocam, aos que não tocam. Porque me parece que não é só...
00:35:04
Speaker
Falamos do que é a solidão e o que é a solitude, depois eu acho que ainda há um outro lugar que é a solidão acompanhada, mas que não é a solitude. É outra coisa, que é o sítio que é a solidão, onde tu não sentes o vazio da solidão, nem o desespero da solidão.
00:35:22
Speaker
é um sítio onde se sentes acompanhado, mas de facto não tens companhia. É uma coisa que eu gosto de pensar e gosto de conversar aqui com a Patrícia e é por isso que eu também gosto muito desta canção e também a escolheria, embora
00:35:42
Speaker
Pronto, entretanto escolhi outra e que não vai ser agora que vamos conversar sobre ela porque ia perguntar à Patrícia qual é que foi a canção favorita dela.
00:35:53
Speaker
Antes disso, ia só dizer que ainda há outra coisa que eu acho incrível, porque é um tocar sem pesar, não é? É uma música que não desmaga, que solta, e isso é extraordinário. Eu acho que no álbum, então, está sempre presente neste lugar. Uma coisa que te solta, que te faz ver sem ficar cego, não é? Claro, claro, claro. Sim, porque depois há outra que a Patrícia... Eu acho que a Patrícia escolheu. Eu vou tentar adivinhar.
00:36:16
Speaker
Sério? Eu acho que a Patrizia escolheu o Ear There and Everywhere. Meu Deus, como é que tu imagina? Porque tu me disseste, isto é tudo mentira. Não, mas quando eu fui ouvir o disco outra vez, eu por acaso fiz a aposta nesta e numa outra, que tu por acaso não foi a tua segunda hipótese, mas quase acertei. Então, queres ouvir primeiro? Vamos lá ouvir o Ear There and Everywhere.
00:36:44
Speaker
para ter uma vida melhor. Eu preciso da minha amor para estar aqui. Aqui, fazendo cada dia do ano, mudando a minha vida com a onda da terra. Ninguém pode negar que há alguns
00:37:19
Speaker
Runnin' my hands through her hair Both of us thinking how good it can be Someone is speaking But she doesn't know he's there I want her everywhere And if she's beside me I know I need never care
00:37:47
Speaker
But to love her is to be there everywhere Knowing that love is to share Each one believing that love never dies Watching their eyes and hoping I'm always there
00:38:12
Speaker
Eu quero ela em todo lugar E se ela está perto de mim, eu sei que eu nunca vou querer Mas adorar ela é adorar ela em todo lugar Sabendo que eu adoro
00:38:34
Speaker
Each one believing that love never dies
Patrícia e a canção Here, There and Everywhere
00:38:39
Speaker
Watching their eyes and hoping I'm always there
00:39:04
Speaker
Patrícia. Ana. Diz-me, já estava a respirar fundo. Pois, porque é que eu escolhi esta?
00:39:17
Speaker
Não sei se é a favorita, mas foi a favorita do momento, porque me desintoxica. Eu tenho sempre esta ideia, então tenho sentido isto muito ultimamente, nós temos falado muito sobre isto também, mas que há uma violência impermanente nas coisas e esta música é o sítio ao contrário disso. E é que permite amparar esses lugares, portanto não sei.
00:39:35
Speaker
Quando eu vi agora, ou outra vez, acho que gostaria dela de começar de qualquer maneira. Claro. Mas agora, para além do mais, foi uma espécie de cola interno para poder... Porque acho que tem... Também tem uma melancolia implícita que eu acho que está presente em mim. Mas tem este sítio, não é? O amor em qualquer lugar, não é? Que está presente em qualquer lugar e que, de alguma forma, vá tornando possível viver os impossíveis. Os impossíveis no sentido... Agora estava mesmo não no sentido impossível de desafio, mas no sentido impossível de dor e... Quer dizer...
00:40:04
Speaker
acima de tudo é suave e leve. Apesar de ter imensa densidade, que é isto que eu acho que é extraordinário. Tem uma densidade incrível e ao mesmo tempo tem o embalo leve, não é? Que te permite... Há uma falsa leveza. Há uma falsa leveza. Mas que não chega a ser falsa porque é posta num lugar onde tu... Não é? Não é uma falsa leveza no sentido que não é plástica, mas falsa no sentido, exatamente, falsa no sentido que não te faz sentir a densidade do que te está a inscrever. Porque acho que inscreve este movimento de embalo.
00:40:31
Speaker
Que permite... Que permite dar... Olha, pá, a tal capacidade de estar só que tu falavas há bocadinho, não é? E, portanto, não sei. Olha, ouvi... Gostei uma data delas, claro. Gostei de todas. E escolher era difícil. Mas esta desintoxicou-me. Posso dizer assim? Olha, eu agora estava a ouvir-te a dizer... E, pá, eu estava a pensar assim. Não é isso que é o amor. Desintoxica? Não. Esta coisa de... Não. De ser uma coisa altamente profunda, mas que tinha inscrita de uma forma lenta.
00:41:01
Speaker
Fabuloso, acho que sim. Podemos escrever agora. Não sei, eu estou tão cansada da violência que está à nossa volta. Estou tão cansada, tão cansada. Imagine que há 25 anos alguém diria o mesmo e há 50, se calhar, alguém diria o mesmo. Provavelmente. Vai já, já lá. Agora, eu estou tão cansada de termos que estar...
00:41:29
Speaker
Desta firmeza que temos que fazer sobre o nosso valor ou sobre aquilo, sei lá, para não nos deixarmos morrer nesta coisa de morte que nos está a invadir, desta coisa de falta do simbólico, da multiplicidade de lugares, da falta...
00:41:51
Speaker
E agora tu tavas a dizer isso da profundidade inscrita com leveza. Eu pensei, pá, eu acho que isto é o amor, a profundidade inscrita com leveza. Porque claro que o amor também dói, é claro que o amor às vezes também é muito pesado.
00:42:06
Speaker
Mas acho que... O que é isto, pá? Mas é a voz que embala, não é? Só a pensar em isso queria dizer que também me lembrei e não posso não dizer isto. Falar dos Beatles e não falar... Eu tenho um tio, um tio por empresta, que é o melhor amigo do meu pai, mas que... E para mim os Beatles são sempre ligação a ele. Nem consigo apresentar uma parte nostálgica em mim ao contrário. Ok, ok, ok. Mas que faz uma espécie de regresso a esse lugar que tu estás a dizer, não é? Este lugar mais...
00:42:32
Speaker
mais livre de todas estas coisas, não é? Mais solto, mais possível, mais cheio de possibilidades. A possibilidade de existência de tudo, como este disco mostra, para estar aqui tudo. Isso é mesmo. E sem fronteiras, sem preconceitos. Exatamente. Que é o regresso. Agora, a nostalgia mais neste sentido. Estava a pensar numa sessão com Miguel Serras para ele, que punha muito este lugar da nostalgia neste sítio de regresso à nascente. Sim, sim. Sempre possível de regressar ali e construir outra coisa que te transforma mais.
00:43:02
Speaker
A gente conversa mesmo. É a dor de um lugar, não é? Mas pronto, não me interessa muito. Pronto, e foi, sim, e foi. Mas há este regresso à nascente, não é? Para nascer de novo. Sim, sim, aí, de acordo, claro que sim.
00:43:21
Speaker
Só não percebi uma coisa, desculpem se eu te entretanto, mas o que é que isto tem a ver com o teu tio? Porque tu lembras sempre dele? Tava a fazer uma ligação externa também, este lugar de infância. Não o apanhei, não o apanhei. Estava a falar um bocadinho nesta ideia, porque é-me indissociável, percebes a ideia? Mas eu também me lembro...
00:43:40
Speaker
que eu lembro-me desde pequena. Não há mais, nem chama-se Três Divas. Chama-se Três Divas. Mas aquela sensação de... Isto é os Beatles! E ele, o que estava a dizer, o Rui, fazia-me sempre sentir esta coisa. Eu nem sabia muito bem o que era esta coisa espetacular dos Beatles. Mas era esta a sensação.
00:43:58
Speaker
Sim, sim. Ok. Por isso este regresso ao entusiasmo, desculpa, só isso queridos. Ou seja, esta música, apesar de trazer esta sensação de embalo a mim, faz-me isto, não é? Renove-me a possibilidade de entusiasmo. Pronto.
00:44:13
Speaker
e muito bem renovada. Mas isto, não é? A complexidade deste disco e a quantidade de coisas diferentes que estes tipos meteram aqui, não é? É espetacular. E podem coabitar todas. Aliás, as combinações que eles fazem de tudo, desde as influencias, nem sei, tudo. E sai uma coisa extraordinária. Acho que as pessoas deviam pensar nisto em relação à vida, não é?
00:44:42
Speaker
De fato, quatro pessoas que tinham as suas tensões criativas e pessoais, mas de forma que se percebiam que se complementavam.
00:45:00
Speaker
E este disco nota-se muito as personalidades diferentes das duas grandes forças motoristas criadoras dos Beatles, o Lennon e o McCartney, mas também o George Harrison, que também entra, e também o ambiente onde eles estavam, que era um ambiente, enfim, com a experimentação de substâncias, e a Índia, e há muitas coisas.
00:45:30
Speaker
o uso do citar, etc., portanto, que rompe completamente, não só rompe como inaugura. E depois eu estive a ouvir este disco outra vez para ser um menino bonito e saber o que é que havia de responder, caso me fosse perguntado alguma coisa.
00:45:54
Speaker
E já não houve há algum tempo. A verdade é essa. E podia ser feito ontem. Agora, exatamente. Percebes e... E começas a perceber, olha, estes gajos, os bolheiros foram tirados aqui, os não sei quê foram tirados aqui lá, os não sei como é. E aqui, esta contemporaneidade, toda a modernidade, no meu entender e assim que eu a vejo, é feita sempre com tradição. É um bocadinho o que o Hélio dizia e que tinha canção.
00:46:24
Speaker
ou seja, é feita de coisas que depois são acrescentadas, mas estão lá. Tu tens é que acrescentar, senão nada vem do nada. E eles são o melhor exemplo disso, daquela mudança com compromisso que eu gosto, o Here and Everywhere,
00:46:43
Speaker
o Eleanor Rigby e depois as coisas mais experimentais do Tomorrow Never Knows neste disco também, com a fita puxada ao contrário e umas vozes meio estranhas do John Lennon e de filosofias hindus e veda e sempre apelar nada de nostalgia, tens a vida curta e vais morrer a qualquer momento, portanto aproveita.
00:47:07
Speaker
E isto está, perpassa o disco todo, mesmo na parte em que vem a solidão e que vem as partes. O McCartney era um romântico que mais, enfim, mais dado a coisas como o Here There and Everywhere. O Lenin dizia que eram canções da vózinhas. Mas esta união de almas, não é?
00:47:34
Speaker
O Harrison, até com o Ringo, é uma coisa extraordinária e foi o que eu voltei a descobrir, muito obrigado por me obrigarem a passar semanas e semanas com a cabeça nas paredes. Foi o que eu vim a descobrir outra vez e foi bom. Vocês conhecem alguém que tenha visto Beatles? Que tenha visto?
00:48:00
Speaker
Havia um senhor em Pontesour que ainda é da minha família, que é o António Figueira, que é ainda meu primo afastado. E o Sr. António, aí há uns anos, ele já morreu, mas aí há uns anos, estávamos sentados lá num pub a beber uma cerveja no copos e ele diz-me...
00:48:16
Speaker
Oh, Natriz, você sabe que eu vi Beatles. Eu nem queria acreditar. Você sabe que eu vi. E o mais incrível... Esse é que iria estar aqui, não é? Ele morreu há pouco tempo. Mas sabe o que é que ele viu? Ele viu Beatles em Hamburgo, que é extraordinário. Em 1961. Exatamente. É extraordinário.
00:48:36
Speaker
de acreditar quando ele me disse assim, oh, Sr. António, que já não sai daqui enquanto me conta tudo. Que bom! Era ele, o António Figueira, que viu Beatles e tinha um professor de matemática, que era o professor Minga, que viu Credentially Water Revival. E eram assim, de repente, as duas pessoas, wow, estes tipos viram isto. Exato.
00:48:59
Speaker
Voltando aqui ao disco, eu não conseguia escolher, como já vos disse, o Eleanor Rigby seria o que eu escolheria se me perguntassem qual era a música que eu mais gostava deste disco.
00:49:15
Speaker
Mas precisamente porque só para ir aqui um bocadinho, só para furar aqui um bocadinho estas duas canções eu acho que vamos ouvir o Texman porque lá está o George Harrison em tudo. E está o George Harrison em tudo e acho que é extraordinário estes contratempos.
00:49:34
Speaker
Pá, que eu adoro isto, onde o Ringo... E tem uma história essa canção. Pá, não é incrível? E não, e o Ringo na bateria é espetacular. O Ringo é um grande baterista. Sim, e de repente, neste disco, há uma música onde estes dois podem mesmo brilhar, o Harrison e o Ringo Starr. E é por isso que eu também a escolhi. Vamos ouvi-la e já conversamos um bocadinho sobre ela. Sim, senhora.
Taxman: Comentário sobre impostos e excelência musical
00:49:58
Speaker
1, 2, 3, 4, 1, 2...
00:50:05
Speaker
Eu vou te dizer como vai ser. Tem um para você, 19 para mim. Porque eu sou o Taxista. Sim, eu sou o Taxista. 5% de cerveja é muito pequena.
00:50:36
Speaker
Eu não pego. Porque eu sou o Taxista. Sim, eu sou o Taxista. Se você gasta o carro, eu taxo a rua. Se você tenta sentar, eu taxo a sua cintura. Se você chega a calar, eu taxo o calor.
00:52:32
Speaker
Então, vocês, Texman, fala um bocadinho do Texman, tu sabes muito mais. O Texman tem este riff extraordinário e depois tem este baixo extraordinário e para os maluquinhos como eu que gostam, que parece que não tem nada que fazer.
00:52:54
Speaker
gostam de ouvir os instrumentos isolados do resto. E aqui vê-se, por exemplo, que o Paul McCartney é um baixista, porque o que ele faz com o baixo é outra melodia, ou seja, é outra canção. A melodia é extraordinária.
00:53:10
Speaker
E podia ser outra canção. Bom, mas o Texman nasce porque eles estavam a ter um conflito, e ainda bem que pudeste isso, porque eu fiz ontem o meu IRS. O Texman nasce porque eles estavam a ter um conflito com a autoridade tributária de lado do sítio e da altura.
00:53:35
Speaker
e, sobretudo, em relação à editora, que estavam a sofrer bastante com isso e que achavam injusto, sobretudo o Lennon, que era mais ativo nessa vocalização, no protesto,
00:53:55
Speaker
faz esta letra e que é e que torna o Texman, esta figura do cobrador de impostos, um ser horroroso e que leva tudo, não é? Não deixa de ser verdade. Mas o que interessa, provavelmente, para além da qualidade musical, é estes tipos, vão fazer uma música sobre o cobrador de impostos.
00:54:22
Speaker
Por exemplo, como mais tarde, um ano mais tarde ou dois, onde mais tarde o McCartney faz uma arte a mais direta que é sobre a cadela. Eles fazem o que querem e fazem bem e têm esta liberdade que me interessa muito. Esta liberdade atrai-me bastante e fico até com algo, me inveja, porque é algo que eu gostaria de fazer, é fazer as coisas que gostas de fazer e bem, dentro do possível. É genios, não é?
00:54:52
Speaker
e um bocadinho sinatra também. Portanto, um bocadinho nas tintas, às vezes, para o que te rodeia e para o que dizem de ti, e pronto, é isso. Sim, e eu escolhi precisamente por isso. Já escolhi esta canção por causa do ritmo e por causa do ano.
00:55:08
Speaker
Mas agora nós quando sairmos daqui, vamos verificar isso mesmo. Porque eu acho que isto é George Harrison, não é? Acho que ele foi... Talvez, talvez. Eu acredito, eu acredito. E foi um bocadinho por isso e porque gosto muito destes contratempos e gosto muito baixo. É muito bom. Foi uma questão mais de sonoridade. Mas confesso que acho que é uma música muito atual, porque eu pessoalmente sinto muito... Quero dizer, isto que tu estavas a dizer agora. Eles fazem o que lhes apetece e não...
00:55:40
Speaker
Se calhar se nós conversarmos aqui também ninguém está muito preocupado com o que é que os outros possam pensar, mas a questão é que eu pessoalmente tenho senti diariamente um peso de qualquer coisa
00:55:54
Speaker
Não sei se isto, a Patrícia, eu acho que isto é o regresso do superego, e eu que já destruí o superego há imenso tempo, quer dizer, não destruí totalmente, se não não estava aqui sentada a conversar convosco, estaria no outro sítio. Eu acho que a devoção ao chicote é uma coisa traduzida. É outra coisa, mas não, mas eu não faço devoção ao chicote. Tu não, mas estás apresentando o ponto de vista global. Sim, claro, agora, o que eu estou sentindo, não, mas é que eu voltei a sentir qualquer coisa deste género, que é, mesmo vivendo, quer dizer, eu vivo na minha liberdade e ninguém me atira.
00:56:21
Speaker
Mas, porque é muito interna, não é? Aquilo que falamos muitas vezes, quer dizer, até pode vir, o pânico pode ganhar, o mundo pode mudar todo, se eu não der autorização para isso, se cá internamente eu souber, eu não dei autorização a isto, eu vivo, está bem. Vives tax free. Exatamente, vivo tax free e o pânico não vai matar. Agora...
00:56:44
Speaker
Ah pá, estou tão cansada disto... das palavras, não é? Dizemos as palavras e ficamos... e de repente há um peso de censura sobre as nossas palavras e eu estou muito cansada disto. Muito cansada. Ou seja, eu não vou para casa a viver essa censura, mas num momento in loco, epá...
00:57:08
Speaker
Estou farta disto. E o taxman está lá sempre, não é? Até quando ele fecha os olhos e lhe diz que estou cá. Mesmo quando tu fechás os olhos. Claro, claro. E pronto. Acho que isto passou a ser o nosso dia a dia. Mas compreendo-me depois. Isto é aquilo que me faz zangado. Não, é que...
00:57:33
Speaker
começa a haver uma normalização da autocensura. E isso é terrível, isso não pode acontecer nunca. Tens que ter, obviamente, as tuas regras e saberes que não podes ofender o outro, não podes insultar o outro. E que te podes questionar sobre as coisas. E que te podes questionar, mas a partir do momento em que tu pensas três vezes sobre o que queres dizer, o que queres fazer, o que queres escrever e o que não sei quê. Há aqui uma coisa, há uma espécie de... Olha, é Kafka de facto. Há aqui um eles,
00:58:04
Speaker
que pode ser o que tu quiseres, uma ortodoxia, umas pessoas, não sei, não sei o que é, mas há um clima, de facto, que permite que isso aconteça e que seja normalizado. Acho que deve haver filtros, eu sou institucionista, gosto de que não sou muito otimista, mais uma vez, em relação à natureza humana e acho que nos devemos salvar uns dos outros, mas, e para isso precisamos de filtros e regras
00:58:34
Speaker
e maneiras e cordialidade, muitas coisas. Mas quando pensas duas vezes sobre uma coisa que te é sincera e que, em princípio, não fará mal a ninguém ou um terceiro, e depois pensas que, se calhar, vai haver alguém que não vai achar isto bem, aí já estamos aqui a conversar de altura de coisas.
00:58:59
Speaker
Mas, ou não, eu acho que, quando tu pensas uma vez, eu acho que é importante. Tu estás a olhar ao outro, às vezes, para não confundirmos isto, não é? Nós, às vezes, estamos só a olhar ao outro, o que é ótimo. Eu não vou dizer isto desta forma. Certo, claro, isso é fundamental. Agora, isso, eu acho, como tu dizes, quando tens que pensar duas e três vezes,
00:59:21
Speaker
Mas já estás a deixar de ser tu. Quando o outro te esmaga... Os filtros são fundamentais, mas...
Autocensura moderna versus liberdade artística dos Beatles
00:59:31
Speaker
Mas também acho que existe, e isso também é grave, porque também estamos a ver um momento de...
00:59:38
Speaker
de banalização da violência, tremendo. Nunca se falou tanto sobre violência, acho eu, mas nunca se foi tão violento. Isto para dizer que, repara, estão a voltar coisas inacreditáveis, aquela história outra vez de se pôr em causa da contracensão ou não, quer dizer, nós estamos num nível de loucura, de incapacidade, de alteridade, que é assustador. É mais uma regressão tremenda. Portanto, há aqui qualquer coisa também nesta linha que nós...
01:00:01
Speaker
Ou seja, sim, por um lado, sim, é esta coisa que eu acho que sim, é preciso ser pensada, mas francamente a me assusta a facilidade com que esta parte tirânica da mente se apresenta numa total tentativa da aniquilação da alteridade do outro de uma forma que é, vamos lá outra vez, um regresso e aqui sem nostalgia nenhuma.
01:00:22
Speaker
Não regressa à morte. À morte pura, à morte crua. Não há nostalgia nenhuma mesmo. Isso é de evitar. Mas repara a quantidade de gente nostálgica deste sítio da aniquilação do outro. Como é que se instala tão facilmente este sítio? Não, e quando isso se torna global, portanto, é uma agressão civilizacional que não interessa muito. É sério? Já não sei. Fui ontem, ontem. Já não sei. Que era esta questão, outra vez, das coisas contraceptivas. Pensei que isto é gozar. Fui ver várias vezes para ver se aquilo era mesmo verdade.
01:00:51
Speaker
Porque me parece impossível, impensável, como é que se chega novamente a este sítio de aniquilação completa, que é o oposto de todo este álbum. É impossibilidade de viver este lado mais melancólico. Não, é impossibilidade de também viver este lado mais melancólico. Este lado é um disco de liberdade e de experimentação e de arrojo,
01:01:21
Speaker
contendo aquilo que já vi, sem renegar. Sem renegar deste lado melancólico. Não é uma fratura, é um arrojo que contém. Que contém este lado melancólico, mas a impossibilidade de fazer esta síntese melancólica, que eu acho que este é o problema da atualidade, não há síntese melancólica, como não há síntese melancólica? Pois, exato. Estás permanentemente na aniquilação da alta. Exato, concordo.
01:01:43
Speaker
E isso preocupa-me muito. Preocupa-me muito. Acho que nós estamos a terminar. Estamos e temos. É natural, tens comigo, é sempre assim. Chega sempre a esta altura. O que é que vos apetece dizer mais? Dizem que foi um prazer.
01:02:04
Speaker
Olha, gostei muito. Apesar da maldade que me fizeram em escolher um disco e uma canção, mais uma vez soube-me bem porque fez-me este exercício de estar a falar com outras pessoas, a falar com o outro.
01:02:26
Speaker
E isso para mim cada dia, infelizmente, tende a ser uma raridade como um privilégio. E só por isso quero vos agradecer. Muito obrigado. E peço desculpa de qualquer coisinha. Obrigada a nós, mais uma vez, por teres aceitado o convite. Vou agradecer também à Patrícia, à Carolina, que fez o som.
01:02:49
Speaker
A que está a fazer, ainda vais fazer mais. Agradecer ao Bernardo Trindade e à Gabriela Loup por nos terem aqui cedido o espaço hoje para batermos esta agradável conversa.
01:03:03
Speaker
Agradecer à Climaps e editores que nos importou este material todinho. Agradecer à Joana Bernardo, que faz a voz do Jingle, e agradecer principalmente aos Dirty Mac, onde está o John Lennon, por esta maravilhosa introdução, a canção que está na nossa introdução. Canção? Música. Jingle. Sim, está na nossa introdução.
01:03:29
Speaker
Eu, hoje, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu, eu,
01:03:52
Speaker
mas que é muito bonita e que tem múltiplas interpretações. É engraçado, só escolheram uma carta engraçada. Tirando a primeira ou a outra. Tirando a... O Taxman só escolheram uma carta. Porque precisamente... Não, deixe-me analisar o museu. Exatamente, era isso mesmo. Foi precisamente por causa disto que estivemos aqui a conversar que o Forno One e os olhares
01:04:19
Speaker
os olhares vazios por trás das lágrimas que me assustam muito. Vamos lá então. Até para mais.
01:04:38
Speaker
She wakes up, she makes up She takes her time and doesn't feel She has to hurry, she no longer needs you And in her eyes you see nothing No sign of love behind the tears Cried for no one A love that should have lasted years
01:05:04
Speaker
Você quer ela, você precisa dela E ainda você não acredita em ela Quando ela diz que sua amor está morto Você acha que ela precisa de você
01:05:27
Speaker
And with her eyes you see nothing No sign of love behind the tears Cried for no one A love that should have lasted years You stay home, she goes out She says that long ago she knew someone But now he's gone, she doesn't need him
01:05:54
Speaker
Your day breaks, your mind aches There will be times when all the things she said Will fill your head, you won't forget me And in her eyes you see nothing No sign of love behind the tears, cried for no one A love that shouldn't last two years
01:06:33
Speaker
3 Divãs, a Psycanálise, o Mundo e o Rock n' Roll.